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Confesso que a Rússia sempre foi um país que me inspirou um pouco de medo e nunca tive muita vontade de conhece-la. Acho que assisti muito filme americano e tudo que vinha a minha cabeça antes de visitar o país era máfia e russos andando por aí bêbados e com uma faca na mão.

Com certeza uma visão muito limitada de toda a riqueza cultural, natural e pessoal do país e que poderia deixar qualquer russo muito bravo, assim como nós brasileiros ficamos quando dizem que o Brasil só tem índio e mulata dançando samba.

Mesmo assim, foi inevitável sentir uma certa insegurança em algumas situações, especialmente logo que chegamos. Passamos quase 2 meses viajando por países mais estruturados, com baixo índice de criminalidade, muita segurança, com moradias que mais pareciam casinhas de bonecas em lindas cidades pitorescas no campo ou no mar.

De repente, estávamos na Rússia e tudo já se mostrava diferente: a estrada não era tão conservada como a da sua vizinha Finlândia, fomos direto para São Petersburgo e o apartamento que alugamos estava num prédio abandonado e muito antigo na região central da cidade, as pessoas falavam uma língua que não conhecíamos e muitas pessoas tinham o costume de ficar nos encarando (não sei se por curiosidade, mas era algo que realmente intimidava).

O primeiro apartamento que ficamos nos chocou bastante e chegamos a comentar que estávamos conhecendo a Rússia como um russo. Era um apartamento bem pequeno, não mais do que 30 metros quadrados. Na cozinha apenas um frigobar (não teria espaço para uma geladeira). Tudo muito bonitinho e reformado dentro do apartamento, mas do lado de fora era pavoroso. Os corredores cheiravam mofo, o elevador estava destruído, paredes sem acabamento, algumas pintadas de verde, outras não, várias pichadas. O chão estava todo quebrado e fiquei pensando se não teria o risco de o prédio desabar.

O prédio é basicamente residencial e tivemos a oportunidade de observar várias famílias russas com 2 ou mais filhos e que viviam naquele espaço de 30 metros quadrados. Nosso apartamento, por mais que fosse reformado, tinha um constante cheiro de cerveja que me intrigava. Depois descobri que não era cerveja e sim ferrugem dos canos, a água saía amarela em qualquer torneira. Não sabemos quantos anos tinha aquele prédio, mas me parecia que beirava os 100 anos, dado o seu estado de conservação. Nada de portaria, nada de controle de acesso, nada de limpeza das áreas comuns ou retirada de lixo, nada de aquecimento (só no inverno). Era um prédio sem manutenção largado à própria sorte. Pensamos que não tínhamos tido sorte na escolha, mas depois descobrimos que esses prédios são a regra na Rússia, e não a exceção.

No dia que chegamos tinham algumas pessoas sentadas no andar de baixo fumando e conversando (com aquele cheiro de mofo forte. Corajosos!). Passamos pelas escadas umas 4 vezes carregando nossas coisas para o apartamento e cada vez que passávamos por eles eu tinha a impressão de que falavam de nós. É tão ruim você não entender nada de um idioma e ser uma pessoa paranoica, porque na minha cabeça já passava coisas como: Vamos roubar esses turistas? Vamos entrar no apartamento deles quando eles saírem? Felizmente não devem ter falado nada disso, pois nossos dias foram bem tranquilos e sem nenhuma ocorrência (mesmo assim eu dormi com medo na primeira noite rsrs).

Decidimos subir até o extremo norte da Rússia para tentar ver a Aurora Boreal, numa viagem de 1.400 quilômetros desde São Petersburgo. Já era certo que não chegaríamos no mesmo dia, mas onde dormir no caminho? Não existem muitos campings na Rússia e, de fato, não encontramos nenhum pelo caminho. A ideia de fazer camping livre na Rússia não me agradava muito, mas não teve jeito, depois de dirigir por 12 horas, acabamos parando num posto de gasolina para dormir. Nos misturamos com outros caminhoneiros e entregamos nas mãos de Deus. Se não fosse pela chuva e vento, teria sido uma das noites em posto de gasolina mais tranquilas que tivemos!

Quando já estava baixando a guarda e começando a me sentir mais à vontade na Rússia, eis que aconteceu a situação mais estranha de todas. Chegamos em Murmansk, a cidade que usaríamos como base para ver a aurora boreal, num dia muito frio e chuvoso. O prédio onde alugamos um apartamento era mais sinistro que o primeiro e com uma aparência digna de filme de terror por dentro. No andar do nosso apartamento tinha um cômodo com as portas abertas e em total abandono (só pensava que alguém poderia ser puxado ali para dentro e ninguém veria nada), nosso corredor era todo pichado, vidros da porta de entrada quebrados e aquela penumbra de um dia de frio e chuva.

Além disso, o prédio não tinha estacionamento, como a grande maioria dos prédios russos, e nosso carro teria que dormir na rua os dias que ficaríamos ali. Somado a isso, a tranca do nosso apartamento era muito frágil e poderia ser arrombada com facilidade se alguém quisesse. Até aí, nenhum problema, pois a cidade era menor e tudo indicava que mais tranquila e menos perigosa.

Começamos a descarregar as coisas do carro e quando já estávamos levando para o apartamento fomos abordados por uma senhora na entrada do prédio, que estava conversando com um homem quando chegamos.

Eu pensei que ela fosse síndica do prédio ou alguma coisa nesse sentido. Ela ficou falando sem parar em russo e, por fim, nos acompanhou até a porta do nosso apartamento. Não entendemos seu comportamento, mas também não tivemos como dispensá-la. Uma vez na porta, ela ficou uns 5 minutos nos enrolando, olhando para dentro, e tudo que conseguimos entender era alguma coisa sobre o apartamento 540 e que ela queria um copo de água.

Demos o copo d’água e na hora já comentei com o Cris que provavelmente o homem que estava com ela estava arrombando o nosso carro naquele momento. A famosa técnica de um distrai e o outro rouba. (Essa é a única parte boa de não falarmos a mesma língua. Podemos falar o que quisermos na frente deles e eles não entendem uma palavra sequer rsrs). Encerramos a conversa com ela rapidamente e descemos, mas graças a Deus nosso carro estava intacto. Terminamos de subir as coisas e o homem ficou o tempo todo do lado de fora do prédio acompanhando a nossa atividade, sem nos dirigir uma única palavra e com uma cara muito sisuda. A mulher saiu e voltou para o prédio duas vezes e não falou mais conosco.

Claro que o meu radar de perigo acendeu e já imaginei que alguma coisa ruim poderia decorrer dessa abordagem: em algum momento da semana ou as nossas coisas do apartamento seriam roubadas ou o nosso carro. Não fiquei em paz aquele dia e não saía da janela vigiando o carro. Minha vontade era dar meia volta e seguir viagem para outro lugar, mas o apartamento já estava pago para a semana e se eu fosse embora seria um prejuízo muito grande. O jeito seria ficar ali mesmo, então colocamos uma trava extra no carro e entregamos a situação nas mãos de Deus. Tudo que nos restava era orar.

No dia seguinte o tempo amanheceu melhor, até saiu um pouquinho de sol, e conseguimos andar pela vizinhança. Percebemos que era um bairro tranquilo e bem residencial, com muito comércio em volta. Os prédios residenciais de Murmansk são todos muito feios por fora, descascados, cinzas e sem manutenção. Eles foram construídos todos iguais na época do comunismo e manter a fachada nova é muito difícil numa região que enfrenta anualmente temperaturas extremas de -30 graus e muita neve. O jeito é conviver com essa aparência ruim. Eles nem devem perceber, mas quem chega de fora se choca.

Nosso coração ficou um pouco mais em paz depois que andamos pelo bairro e sentimos o clima da vizinhança. Nunca saberemos o que se passou de fato com aquela senhora, se ela simplesmente estava querendo ser simpática e acolhedora, se só precisava de um copo d’água, ou se realmente estava analisando nossas coisas para ver se valia a pena nos roubar. O homem, por sua vez, que no dia anterior parecia um mafioso russo muito mau e intimidador, no dia seguinte nos encontrou novamente na entrada do prédio, abriu um largo sorriso como se fôssemos velhos amigos, estendeu a mão e nos cumprimentou calorosamente. Até algumas palavras em inglês ele arriscou. Nessa hora ele não pareceu mais assustador e parei de ter pesadelos com ele no resto da semana rsrsrs. Situações bizarras da Rússia!

Natany Gomes

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